28.9.06

Argumento liberal para a não-demonização do voto nulo

O voto é a principal instituição da democracia liberal. É através dele que são escolhidos e legitimados aqueles que comporão o governo (executivo e legislativo). Nesse sentido, enquanto delegação a outro da própria vontade, o voto deve ser creditado a uma personalidade política e a um projeto político com o qual o eleitor-cidadão convirja. Em casos nos quais, devido à inexistência de projetos políticos que contemplem os anseios do eleitor, o cidadão vota em um projeto que lhe é estranho e distante por falta de uma opção mais adequada, uma parte da soberania cidadã é perdida. De fato, assim ocorrendo, o eleitor confere legitimidade a um não-representante, o que, segundo Locke, configura tirania. Desse modo, se é verdade que o voto é instituição de tão grande importância, contudo não adquire validade por si só, mas apenas em referência ao projeto político que representa e a proporção do eleitorado que lhe creditou legitimidade. No Brasil, a despeito da novidade da instituição devido a nossa recente democracia, uma considerável parcela do nosso eleitorado parece disposta a anular o voto. É de se questionar a natureza desta disposição: a) uma recaída na tentação autoritária? b) descrença oriunda de uma frustração em relação a um governo eleito sob o signo da mudança? c) demanda por projetos políticos novos que não é contemplada pelas opções apresentadas? Na confusa cena política da sociedade civil nacional as três possibilidades parecem se fundir. Destas, a terceira me parece a mais saudável e não deve ser combatida. A delegação da representação não deve se pautar pela lógica do “menos pior” em um realismo empobrecedor e castrante, mas deve, principalmente em um contexto de primeiro turno, se pautar pela legitimação de um projeto com o qual se concorda mais do que se discorda. A atual conjuntura política nacional incita boa parte do eleitorado a desejar o novo. Numa democracia substantiva esse novo deve se fazer surgir em vista de contemplar democraticamente os anseios por representação por parte dos seus cidadãos insatisfeitos. O voto nulo é parte do nosso sistema eleitoral e, portanto, um direito democrático. Não deve, contudo, ser a regra, posto que um país precisa de governo. Mas um alto índice de anulação nos permite perceber que a incompetência da democracia formal em responder aos anseios do nosso povo exige a conquista de uma democracia plena, onde direito político se converta em direito social. Já conquistamos o direito de votar e isso é positivo. Agora é o momento para avançarmos historicamente, como diz Bobbio, e que o voto sirva não para a manutenção de privilégios, mas para a legitimação de projetos políticos que atendam aos anseios dos representados. Tentar impor aos cidadãos a idéia de que se deve votar seja em quem for apenas porque anular o voto é negativo é uma atitude despolitizadora, assim como pensar que votar nulo é votar para mudar a situação. Votar nulo é simplesmente a indicação de que algo vai errado com o sistema político; a curto prazo sinaliza para a vitória daqueles candidatos que serão votados, de uma forma ou de outra, mas a longo prazo permite-nos a construção de novas alternativas. Dizendo de forma liberal: quem se sentir representado, vote; quem não se sentir representado, anule e busque, civicamente, construir um novo caminho, sempre respeitando o regime democrático.


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