30.7.06

De volta aos tempos de que nunca saímos


Talvez vossas senhorias julguem demasiado sensacionalista a análise seguinte. Mas de antemão notifico que, se o rótulo de sensacionalismo proceder, trata-se de um sensacionalismo que não objetiva vender mais exemplares a partir de uma manchete chamativa, mas sim, o fruto de uma grandiosa desolação. O fato é que, rondando pelos diversos websites que cobrem o cotidiano do massacre do povo libanês pelos fundamentalistas de Israel e dos Estados Unidos da América, encontrei uma foto um tanto atípica: uma criança desenhando em um míssil em plena casamata do exército israelense, já na fronteira com o Líbano. Abaixo da foto a legenda: “criança judia desenha em míssil destinado aos inimigos”. Tal cena lembrou-me o adestramento dos jovens e crianças pelos nazistas e stalinistas no século XX ou as guerrilhas africanas que também utilizam crianças em suas forças armadas. No entanto, o Estado israelense orgulha-se de seu estágio civilizacional, de suas Luzes, em contraposição à barbaridade manifestada pelos fanáticos do Hezbollah. Mas, em tempos de guerra, os parâmetros civilizacionais são deixados de lado e o adestramento retorna à cena de maneira explícita: “Vai, filhinha, desenhar no míssil que o nosso país vai mandar lá pro altão, bem perto do céu, e que vai nos proteger dos homens maus que querem acabar com o nosso povo e a nossa fé...”

Sempre se costuma dizer que as crianças são sinceras e inocentes e que, por essa razão, as ofensas oriundas delas são facilmente perdoáveis. Talvez pensando nisso tenha surgido a idéia dos desenhos infantis nos mísseis, tipo aqueles bonequinhos de palitinhos... Sim. Quem sabe ao ter uma perna arrancada, um filho assassinado ou uma casa pelos ares os libaneses não pensem: “Deixa pra lá... Olha que ursinhos bonitinhos desenhados...”

Mas o objetivo é claro: familiarizar, através destes ritos tribais dos desenhos em mísseis, o povo israelense com uma luta de longo prazo e que demandará o apoio incondicional das novas gerações à causa sionista. A meta: jogar os palestinos ao mar e esvaziar as zonas imediatas das fronteiras israelenses afim de garantir uma zona limítrofe à la muro de Berlim.

Enquanto isso Koffi Annan e sua patética ONU lamentam o fim do Food for Oil, programa que lhes garantiu uma vida agradável enquanto Saddam Hussein esteve no poder, e clamam pela paz com a mesma efetividade que o caquético papa (aliás, o novo papa não é caquético – esqueci-me que o gorducho já morreu). E que este libelo não soe como uma apologia à luta do Hezbollah. Trata-se de um grupo de fanáticos tão merecedor de meu respeito quanto Bush, o papa ou os especuladores internacionais.

Todas as épocas da história foram marcadas por lutas bárbaras e sanguinárias. Mas sempre houve um lado com o qual se podia criar uma identificação, um lado que, equivocadamente ou não, lutava pela liberdade e igualdade. A diferença, agora, reside no fato de que não há lado para o qual torcer. A esperança é que os Estados Unidos, o Irã, a China e a Rússia entrem na guerra e acabem com a história humana de uma vez por todas.

25.7.06

Mais uma guerra...

Israel avança sobre o Líbano. E quando digo sobre o Líbano me refiro também aos seres vivos que vão se tornando mortos. Mas, como se costuma pensar, vidas árabes ou orientais valem menos do que as nossas vidas brancas, ocidentais e de classe média. A imprensa mundial demonstra pateticamente um sentimento de desconforto e piedade ao qual verdadeiramente não dão lugar em sua ânsia pelo "furo" do dia. Sim, pois amanhã ninguém irá lembrar que uma guerra aconteceu e que seres humanos morreram naquilo a que Bush simpaticamente e de boca cheia chamou de bullshit. O mundo da vida cotidiana segue impecável até que os senhores do mundo decidam que é hora de romper o marasmo para pôr em uso os arsenais militares e justificarem, dessa forma, os altos orçamentos na área de defesa mesmo no mundo pós-Berlim, onde já não há claros inimigos no horizonte. Daí o inimigo não ser mais um Estado, mas os virtuais terroristas ou um grupelho como o Partido de Deus (Hezbollah). O cotidiano é efêmero como efêmera é a vida na visão estratégica da divisão mundial do poder e do lucro. Mas a morte haverá de ser absoluta, eis o nosso reconforto. Em homenagem aos mortos no Líbano (e em todos os lugares do mundo, pois não faltam pessoas a morrer) posto aqui um poema.


A morte absoluta

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

Manuel Bandeira